quinta-feira, 5 de junho de 2014

A irrelevância do noticiado e a extensão do fenômeno patafísico

Ao assistir o noticiário do telejornal já parece que estamos diante de uma peça de Ionesco, tamanha é a irrelevância do noticiado. Agora com esses videos em ascensão (bufada, levantada antes da hora, caneta caindo) temos certeza que os sintomas patafísicos se estendem a todos os meios multimídia.

Na peça A Cantora Lírica Careca (La Cantatrice Chauve, 1950) do dramaturgo e patafísico do Teatro do Absurdo Eugène Ionesco (1909 a 1994) podemos ver tudo aquilo que é necessário para construir uma notícia de jornal ultimamente: uma suposta credibilidade dos noticiantes, um despertar de curiosidade pelo que será dito e informações fragmentadas. Assim acontece até que uma notícia qualquer e totalmente irrelevante acaba recebendo uma leva de importância e sendo transmitida como "extraordinária, inacreditável".
Sra. Smith ao casal Martin: vocês que viajam bastante devem ter muita coisa para contar. 
O Sr. Martin para a sua mulher: Diga querida, o que você viu hoje?

Sra. Martin: Não vale a pena, não acreditarão em mim.

Sr. Smith: Não duvidaremos da sua boa-fé.

Sra. Smith: Você os ofenderia se o fizesse.

Sra. Martin (com graça): Pois bem, assisti hoje a uma coisa extraordinária, inacreditável.

Sr. Martin: Diga logo, querida.

Sr. Smith: Ah! Vamos nos divertir.
Sra. Smith: Finalmente!
Sra. Martin: Muito bem, ao ir ao mercado para comprar verduras, que estão cada vez mais caras...
Sra. Smith: Onde é que vamos parar?

Sr. Smith: Não devemos interromper, querida levada!

Sra. Smith: Via na rua, ao lado de um café, um senhor convenientemente vestido, com cerca de 50 anos, talvez nem isso, que...

Sr. Smith: O que, quem?

Sra. Smith: O que, quem?

Sr, Smith: Não devemos interromper, querida. É desagradável.

Sra. Smith: Pois bem, vocês dirão que inventei, mas ele pôs o joelho no chão e se agachou... 
Sr. e Sra. Smith: Ohh! 
Sra. Martin: Sim, agachado! 
Sr. Smith: Impossível! 
Sra. Martin: Sim, agachado. Aproximei-me dele para ver o que ele fazia.
Sr. Smith: E então? 
Sra. Martin: Ele amarrava os cordões do seu sapato que tinha soltado.

Os outros três: Fantástico!

Sr. Smith: Se não fosse a senhora, não acreditaria.

Sr. Martin: Por que não? Veem-se coisas ainda mais extraordinárias quando se anda por aí. Eu mesmo vi sentado em um metrô um senhor que lia tranquilamente seu jornal!

Sr. Smith: Que original! Talvez fosse o mesmo.
Tudo isso ainda é mais agravado com a aproximação da Copa do Mundo. Para tentar entender como esses noticiários ainda seguem prestigiados mesmo noticiando coisas como "Neymar e namorada não dormem em casa", basta entrarmos no youtube e vermos que os telespectadores, agora como usuários da internet, condescendem por muito menos.

Agora acontece o inverso, a patafísica diária do telejornal se volta contra ela mesma e faz de vítimas seus apresentadores. Alguns videos que captam acontecimentos "extraordinários, inacreditáveis" de apresentadores de telejornais em ascensão no youtube nos dão certeza de que os sintomas patafísicos se estendem a todos os meios multimídia.

A bufada [poética] ao vivo repercute imediatamente, a caneta que caiu ao encerramento da edição (que deselegante...) é vista mais de 190 mil vezes em apenas um dia. E vale a pena lembrar do micasso que a apresentadora levou a, após o fim do telejornal, se levantar da sua cadeira!!! 


Como fazer uma notícia para um telejornal
Sandra Annenberg deixa caneta cair no encerramento do 'Jornal Hoje'
https://www.youtube.com/watch?v=kKuzw96BMJs
O jornalismo relativista na internet

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